A cosmovisão medieval



Diz o Salmo 19(18): "Os céus cantam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos.

O dia entrega a mensagem a outro dia, e a noite a faz conhecer a outra noite. Não há termos, não há palavras, nenhuma voz que deles se ouça; e por toda a terra sua linha aparece, e até aos confins do mundo a sua linguagem.

Ali pôs uma tenda para o sol, e ele sai, qual esposo da alcova, como alegre herói, percorrendo o caminho.

Ele sai de um extremo dos céus e até o outro extremo vai seu percurso; e nada escapa ao seu calor..."

E ainda lemos no Salmo 104(103): "Assentaste a terra sobre suas bases, inabalável para sempre e eternamente; cobriste-a com o abismo, como um manto, e as águas se postaram por cima das montanhas..."


Para o homem medieval tudo que existe refere-se diretamente a Deus e tem Nele sua causa primeira. O homem encontra-se na terra como "em passagem"; sua verdadeira pátria é o céu. A comunicação com o "sagrado" é fundamental para poder vencer as "forças do mal" que continuamente o ameaçam. A vida terrestre é uma batalha constante entre "o bem" (Deus) e "o mal" (o diabo). Após a morte a alma dos justos segue seu caminho para o céu, enquanto os pecadores pertinazes são jogados no inferno.

Da habitação celeste os amigos de Deus recebem apoio e ajuda através dos santos e santas. Ter uma recordação tangível deles (relíquia) é garantia de proteção.

As crianças não batizadas iriam para o limbo, uma espécie de vestíbulo do céu.

A cosmovisão antiga é estática e fechada, apresentando uma realidade acabada e perfeita.

"Conforme a narração sobre a criação, a terra é mais velha que o sol, a lua, as estrelas, pois estes só foram criados no quarto dia da criação. O que, aliás, não impede que a luz fosse criada no primeiro dia, independentemente dos mesmos corpos celestes. A abóbada azul era imaginada como uma cúpula que realmente existia, uma tenda armada. Tanto em cima desse firmamento quanto debaixo da terra encontravam-se provisões de água. Quando a água, conforme a narração sobre o dilúvio, chegou até inundar o topo da mais alta montanha, isto foi possível porque foram abertas as comportas do céu e dos abismos. Imaginou-se que a terra fosse um disco chato, em cima do qual se ia abobadando a cúpula celeste. Ao longo desta cúpula andavam o sol, a lua e as estrelas, entre o seu levantar e o seu pôr. Mesmo concedendo que a narração da criação seja mais um hino glorificador do que uma explicação científica, não deixa de ser esta concepção do mundo, por mais primitiva que seja, a da Bíblia".


A penitência na Idade Média



Na Igreja Antiga havia grande rigor quanto à recepção do sacramento da penitência. Pecados "capitais" (idolatria, adultério e homicídio) eram, normalmente perdoados uma única vez (irrepetibilidade) e após longas e penosas penitências, que poderiam durar anos! Havia, igualmente, diversas "classes" de pecadores.

A partir do século VI, no início do período medieval, houve mudanças notáveis na práxis penitencial. Divulga-se o costume de conceder a reconciliação todas as vezes que os fiéis a pedem. Serão, sobretudo os monges irlandeses que propagarão esta repetibilidade do sacramento.

Quais são as características dessa nova forma de penitência? "O pecador se apresenta ao sacerdote e acusa seus pecados; este lhe impõe a penitência conforme o pecado confessado. Para cada pecado ou tipo de pecados corresponde uma determinada penitência, segundo as diversas tarifas previamente estabelecidas. Daí o nome de confissão tarifada. O pecador se retira depois da acusação e da imposição da penitência, cumpre a penitência e retorna para receber a absolvição. Contudo, quando ao penitente se tornava penoso voltar, a absolvição podia ser dada imediatamente após a imposição da penitência, sob a condição de que o penitente a cumprisse posteriormente. Nesta modalidade a absolvição é dada mediante a imposição das mãos, acompanhada pelas devidas orações, mas normalmente sem a participação nem a presença da comunidade.

Para que os confessores estivessem em condições de assegurar penas adequadas aos pecadores foram redigidas listas de tarifas, chamadas "livros penitenciais". Havia uma grande série deles, que se multiplicavam de acordo com as diversas regiões. O conjunto destes livros penitenciais mostra que a penitência tarifada conserva, numa medida notável, o antigo rigor das obras penitenciais. Consistiam em mortificações, mais ou menos duras, como mortificações corporais, vigílias, orações prolongadas, jejuns e abstinências de diversos tipos e gêneros. A duração destas penitências podia ser de um dia, de semanas, meses e até anos. As penas impostas para cada pecado se somavam e assim, segundo o número e a gravidade dos pecados, podiam totalizar um período de penitências que ultrapassava a duração da vida. Para evitar estes casos, os próprios livros penitenciais estavam providos de tabelas de "comutações", "compensações" ou "redenções" das penas longas por outras mais breves e mais rígidas. Por outro lado, admitiu-se também na penitência a "compositio" ou "redemptio" das obras penitenciais mediante uma soma de dinheiro. Outro meio de comutação é o de mandar celebrar um determinado número de missas em vez de penitência prescrita. E para que não houvesse problema de cálculo, os próprios livros penitenciais já traziam indicada a tarifa correspondente em missas. Como o clero paroquial não bastava para atender a tantos pedidos de missas penitenciais, foram ordenados os monges, que então passaram a celebrar as missas penitenciais em série. Por conta própria, cada sacerdote não podia celebrar mais de sete missas por dia. Mas quando necessário, por insistência dos fiéis, podia celebrar até vinte missas diárias! Ainda havia um outro tipo de comutação, a saber, de pagar a um outro para executar a penitência imposta. Esta prática era justificada pelo texto de são Paulo (Gl 6,2). Com isto frequentemente os pobres e os monges fariam penitência no lugar de pecadores ricos.

Supérfluo dizer quantos abusos são gerados pela prática de comutação, sobretudo tratando-se de dinheiro!

Ainda algumas curiosidades sobre o sacramento da reconciliação, na Idade Média. É só a partir do século XIII que aparece o confessionário. Com isso a imposição das mãos é substituída pelo gesto da mão levantada. O IV Concílio do Latrão (1215) prescreve a obrigatoriedade da confissão anual para todos que pecaram gravemente.


A peregrinação a São Tiago de Compostela





Um dos mais famosos lugares de peregrinação na Idade Média é o sepulcro de São Tiago Maior, "irmão do Senhor" (Lc 6,3), "filho de Zebedeu e irmão de sangue de João" (Mt 4,21). As origens do santuário são obscuras. No século IX descobrem-se na Galícia, no noroeste da Espanha, três esqueletos, atribuídos ao apóstolo São Tiago e dois de seus discípulos. O bispo Teodomiro (847) comunica o "milagre" do rei da Astúria, Afonso II, que inicia a construção de um templo, que no decorrer dos anos dará lugar a uma esplêndida basílica. Afluem peregrinos "de todos os lugares, climas e raças". O mosteiro de Cluny (fundado em 910) será um dos grandes propagadores dessa devoção medieval. Surgem verdadeiros manuais com minuciosas informações sobre os milagres do Santo, a transladação de seu corpo de Jerusalém até a Espanha, descrição dos itinerários, como também os textos de orações e ofício litúrgico em honra de São Tiago. Quatro famosas rotas conduzem a Compostela (ver mapa), unindo-se em Puente-la-Reina (Navarra). Até os montes Pireneus gastam-se uns 13 dias a cavalo ou, pelo menos, 25 a pé. Antes de viajar, o peregrino pede um salvo-conduto ao rei ou senhor de seu país, confessa-se num mosteiro, faz testamento de seus bens, deposita suas joias e dinheiro nas mãos do abade, recebendo dele o bastão de peregrino, alforge e cabaça. Após as orações rituais prescritas, inicia sua viagem.

A reputação de São Tiago de Compostela é enorme. Até os mouros, que ocuparam a Península Ibérica durante cinco séculos (711-1492) se admiram diante das massas que afluem ao túmulo do Apóstolo. Guardamos um curioso relato, escrito por um cônego, por volta de 1120, no qual põe em competição São Tiago e Maomé (História Compostelana, livro II, capítulo 50).

"Áli, rei dos sarracenos, que governa os filhos de Agar [designação para os mouros ou maometanos] das duas margens do mar da Espanha, havia enviado em legação à rainha Urraca [filha de Afonso VI, do Reino de Leão e Castela, soberana destas duas regiões em 1109, com a morte de seu pai] e a seu filho [Afonso Ramirez, protegido do Arcebispo de Toledo, um antigo monge de Cluny], mensageiros ismaelitas, sábios e importantes. Dirigiam-se eles para o oeste, pois tinham ouvido dizer que a rainha residia com seu filho nos confins da Galícia [ou Galiza, região dos galegos], quando viram grande número de cristãos que iam orar a São Tiago e de lá voltavam. Admirados, pedem informações a Pedro, oficial que os guiava, acompanhando-os entre os cristãos e que conhecia bem sua língua 'Quem é aquele, para onde se dirige uma multidão de cristãos, a fim de visitá-lo com tanta devoção? Quem é este personagem tão grande e tão ilustre para que venham cristãos de um e outro lado dos Pireneus, rezando a ele em tão grande número? Há tanta gente indo e vindo por esta estrada do oeste que quase não havia lugar para nós passarmos!' Ele lhes responde que é São Tiago, o Apóstolo de Nosso Senhor e Salvador, irmão do apóstolo e evangelista João e, como ele, filho de Zebedeu. Seu corpo foi sepultado nos confins da Galícia, onde é venerado pela França, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha e por todos os países cristãos, mas sobretudo pela Espanha, da qual é o patrono e protetor. Os filhos de Ismael [os mouros ou maometanos] ficam sabendo também que esse Apóstolo havia sido torturado em Jerusalém, no tempo de Herodes, e transportado para a Galícia.

Mas, quando chegam a Compostela, os ismaelitas - que até então se admiram com o que ouviam - ficam estupefatos ao ver a Basílica do Apóstolo. 'Na verdade - dizem eles -, que nobre e que majestade extraordinária tem o templo de vosso São Tiago! Nem de uma lado, nem de outro do nosso mar, nunca vimos algo que a ele se compare. Por Maomé, sua glória deve ser imensa, se ele é honrado no céu tanto quanto é célebre na terra! Que espécie de proteção e de auxílio ele oferece aos que o veneram e lhe prestam culto?' O oficial lhes responde em língua ismaelita: 'Nosso Senhor Jesus Cristo concede grandes graças, por causa de seus méritos e de sua intercessão, de tal modo que, pela misericórdia de Deus cegos veem, coxos andam, leprosos e outros enfermos são curados. Ele intercede por todos os que lhe suplicam com devoção e uma grande quantidade de milagres manifesta seu poder, aquém e além dos Pireneus, Ele livra os prisioneiros de suas cadeias, devolve a saúde aos que estão doentes há muito tempo, ajuda os que estão nas piores dificuldades. Na terra inteira, o Todo -Poderoso revela seus milagres pelos méritos e rogos de São Tiago. Por isso é que tão imensa multidão visita suas relíquias. É esta a razão de tantas pessoas, com pasmo, reconheciam que o seu Maomé, não seria capaz de fazer o mesmo".

Chegados ao santuário, os jacobitas (peregrinos de São Tiago) entram n esta policromia racial unida pela mesma fé. Dizem os cronistas da época que a Basílica não conhecia a noite pois era sempre iluminada pelas velas dos devotos. Todas as raças e classes sociais, todas as nações e culturas se misturavam numa festa ininterrupta. Um "botafumeiro" ou colossal turíbulo, suspenso no teto, balançava sem parar a fim de purificar o ar durante as prolongadas vigílias dos incontáveis e suados peregrinos!


Luzes e sombras na vivência da fé



Tudo na Idade Média é, de uma ou outra maneira, orientado para Deus. Sem o referencial da fé cristã dificilmente entenderemos essa época, os homens e as suas realizações. "E como não há dúvida de que a explicação final da vida se encontra para além desta vida, e portanto é uma explicação sobrenatural que tem as suas raízes no mistério, por que admirar-nos com a presença do misterioso em toda parte, com a irrupção do sobrenatural em tudo?

A vivência cotidiana da religião se caracteriza por contrastes surpreendentes, um quadro onde luzes e sombras se alternam continuamente. Ao lado de muitos exemplos de uma fé lúcida e profunda, encontramos, igualmente, manifestações menos edificantes que mais se aproximam do antigo paganismo.

Senso autêntico do sobrenatural, credulidade popular, gosto pelo maravilhoso, interesses excessivamente materiais, tudo se mistura, como mostra o culto das relíquias. Possuir uma recordação tangível de Jesus, Maria ou um santo qualquer (osso, cabelo, pedaço de sua roupa, etc.) é para uma igreja ou mosteiro motivo de orgulho e fonte de renda. Desenvolve-se um verdadeiro comércio e circulam por toda a parte relíquias duvidosas. Quem garante sua autenticidade? "Para não faltarmos à verdade, temos de reconhecer que muito poucos se preocupavam com isso: essa foi a razão pela qual proliferou o charlatanismo das relíquias. Sabe-se, através dos textos, que foram propostos à veneração dos fiéis um relicário contendo pão mastigado por Jesus, a esponja que foi levada aos lábios na cruz, os cestos da multiplicação dos pães, os panos com que foi envolvido no presépio, as gotas do suor que verteu no horto de Getsêmani (...), e até um dos seus dentes, o que, apesar de tudo, chegou a parecer um pouco estranho, pois - como observavam uns tristes críticos - ao subir para o Céu, o Senhor deia ter ido com o corpo inteiro..."

Nos espíritos crédulos a obsessão pelo demônio provoca verdadeiras psicoses, misturando-se com demonstrações evidentes de superstição. Neste contexto também aparece a bruxaria. "A bruxa, a mulher maléfica, a envenenadora e a nigromante veem aumentar seu campo de ação. Assegura-se que é possível utilizar as forças infernais contra um inimigo, fabricando uma estatueta de cera com a sua imagem e atravessando-a com um punhal - é a feitiçaria. Conta-se que os homens podem transformar-se em animais e correr pelos campos para cometer inúmeros crimes - são os licantropos ou lobisomens. Sustenta-se que as mulheres possessas voam de noite para irem participar o 'sabbath' de Satanás".


Extremamente importante para entendermos a fé medieval é o papel dos santos como intercessores dos homens junto a Deus. "Os santos são incontáveis e aparecem em todo o lugar. Cada província, cada diocese, reivindica para si dezenas deles. Quer na vida corrente, quer na geografia, tudo está sob a proteção desses homens de Deus. Já ao nascer, a criança recebe o nome de um 'padroeiro', que deve venerar com predileção. Para conservar a saúde, deve-se confiar mais nos santos do que nos médicos. Todos sabem que Santa Genoveva cura as febres, que Santa Apolônia e São Brás curam os males da garganta e que Santo Humberto preserva da raiva. No trabalho cotidiano, o camponês invoca São Médard para salvar a vinha da geada, Santo Antão para proteger os porcos e muitos outros para muitas outras necessidades. O pedreiro reza ao Apóstolo São Tomé, o cardador de lã a São Brás, o curtidor a São Bartolomeu, o sapateiro a São Crispim, e todo o viajante sabe que não pode partir tranquilo sem a proteção do Arcanjo São Miguel ou de São João Hospitaleiro. Até as estações do ano são colocadas sob a intercessão dos santos: São Marcos e São Jorge são invocados na primavera, São João no verão e no inverno, São Martinho no outono, e tantos e tantos outros...". Entre todos os santos a Virgem Maria ocupa lugar de preeminência. Disse Bernardo de Claraval(1153): "Todo o louvor à Mãe pertence ao Filho!" Entre os monges cistercienses divulga-se o costume, proveniente da cavalaria e do amor cortês, de chamar a Maria "Nossa Senhora".

Interessante é tomarmos conhecimento de uma Missa, celebrada em ambiente de campo. "A igreja onde vamos entrar é uma igreja rural, rodeada pelo cemitério onde os mortos repousam com simplicidade (...). Antes de entrarmos, notamos na parede uma abertura circular cuja utilidade conheceremos em breve. Entramos na igreja. Não há cadeiras nem bancos (os bancos só aparecerão na época da Reforma); e no chão, apenas palha. Os homens têm a cabeça coberta. Começa a cerimônia e eles continuam com os seus chapéus sem que ninguém se espante (o costume persistirá até a época das cabeleiras, isto é, até Luis XIV), de pé, apoiados num bordão. Descobrem-se na hora do Evangelho. No momento da elevação da hóstia, produz-se uma grande agitação. Ao invés de se entregarem a uma prosternação muda e recolhida, as pessoas acotovelam-se para verem a hóstia que acabou de ser consagrada; dão tanto valor a esta vista que alguns sobem ao parapeito das janelas. Não há tabernáculo (só haverá sacrários a partir do século XVII), e por isso, quando as sagradas espécies não são guardadas numa píxide (uma pomba oca de cobre, suspensa da abóbada), são depositadas numa cavidade da parede que dá para o exterior através daquela abertura que percebemos antes de entrar e que se chama 'oculos'. Por dentro, essa cavidade é protegida por uma grade, e o conjunto constitui o 'armário eucarístico'. À noite, acende-se um círio, e a sua luz atravessa a hóstia diáfana para embalar o sono dos mortos."


Apesar de todas as suas imperfeições, falhas e até desvios, impõe-se uma certeza: não se coloca em dúvida a viva realidade do sobrenatural. Toda a vida do medieval é penetrada do sagrado e da onipresença do divino.


Santo Tomás de Aquino





Um dos maiores luminares da Igreja medieval é, sem dúvida, Tomás de Aquino (1225-1274), mestre espiritual, religioso dominicano, filósofo e teólogo de primeira categoria. Os principais escritos do Aquinate dividem-se em quatro grandes grupos: obras teológicas sistemáticas, questões disputadas, livros filosóficos, comentários sobre a Sagrada Escritura.

Jacques Maritais descreveu o fim da vida de Santo Tomás assim: "Um dia, 6 de dezembro de 1273, enquanto celebrava a missa na capela de São Nicolau, operou-se nele uma grande transformação. A partir desse momento, ele parou de escrever e de ditar. A Suma, com seus 38 tratados, seus 3000 artigos e 10.000 objeções, ficaria inacabada? Como Reginaldo (seu secretário e amigo) se queixasse disso, respondeu-lhe o seu mestre: 'Eu não posso mais; foram-me reveladas tais coisas, que tudo o que escrevi parece-me palha. Agora espero o fim da minha vida, depois do fim dos meus trabalhos.' (...)

Em janeiro, Gregório X enviou-o ao concílio que havia convocado para Lião. Tomás pôs-se a caminho com Reginaldo. Iam montados em mulas. Reginaldo arriscava algumas palavras, tentando distraí-lo: 'Vós e Frei Boaventura sereis nomeados cardeais e isso redundará em glória para vossas Ordens'. - 'Nunca serei nada na Ordem nem na Igreja, respondeu Frei Tomás. Em nenhuma outra posição posso servir melhor à nossa Ordem, do que no lugar em que estou.

Ele parou ao passar pela casa de sua sobrinha, a Condessa Francisca, no castelo de Maenza, na Campanha. Logo ao chegar, porém, caiu sob o peso do cansaço. (...) Sentindo-se gravemente doente, pediu com grande devoção que o levassem ao Mosteiro de Santa Maria de Fossa-Nova, que ficava perto. Ao entrar, apoiou-se com a mão ao muro e disse: 'Eis o lugar do meu repouso para sempre; aqui habitarei, porque assim o quis' (Sl 131,14). Era um mosteiro cisterciense. Ele havia retornado à casa de São Bento, para morrer. Esteve um mês doente, com grande paciência e humildade. Os monges traziam, com suas próprias mãos, lenha da floresta a fim de acender-lhe o fogo, não julgando conveniente que animais de carga transportassem madeira para o uso de tão grande homem. E ele, cada vez que os via entrar no quarto, onde estava deitado, erguia-se humildemente com grande veneração, dizendo: 'De onde me vem que homens santos me tragam lenha? A pedido de alguns monges, expôs brevemente o Cântico dos Cânticos; depois pediu o viático. O Abade, cercado por seus monges, trouxe-lhe o Corpo do Senhor. Quando ele O viu, lançou-se por terra, desfazendo-se em pranto e saudou-O com palavras de adoração admirável e prolongada: 'Eu te recebo, preço da minha redenção, viático da minha peregrinação, por amor de quem estudei e vigiei, trabalhei, preguei, ensinei. Nunca disse nada contra ti, mas se o fiz foi por ignorância e não me obstino no meu juízo. Se fiz algo de mal, tudo entrego à correção da Igreja Romana. É na sua obediência que parto dessa vida'. Ele morreu três dias depois, 7 de março de 1274. Tinha 49 anos. (...)

Conta-se que, em Ratisbona, onde era bispo, Mestre Alberto (Santo Alberto Magno, 1280, que fora professor de Tomás) havia sabido, por revelação, da morte de seu grande discípulo. Então chorou muito. E desde aquele dia, cada vez que ouvia falar nele, prorrompia em lágrimas, dizendo: 'Ele foi a flor e a glória do mundo'".


A inquisição



A Inquisição constitui o fenômeno mais desconcertante da Igreja medieval. Mesmo levando em consideração a mentalidade da época, não há como justificar esta instituição.

Surgiu como meio para salvaguardar a ortodoxia da fé cristã e, consequentemente, para afastar e eliminar todos os inimigos da cristandade. O nome "inquisição" provém de 'inquirere", isto é, procurar hereges e, em seguida, puní-los. Inicialmente esta tarefa é confiada ao bispo local. Os senhores leigos são convidados a ajudar as autoridades eclesiásticas. Assim, Frederico II (1212-1250), da Alemanha, põe a força do Estado a serviço da Igreja para reprimir a heresia:



"Aquele que tiver sido manifestadamente acusado de heresia pelo bispo diocesano será, a pedido dele, imediatamente preso pelas autoridades seculares do local e jogado à fogueira. Se os juízes considerarem que devem salvar-lhe a vida, tendo em vista a conversão de outros hereges, ser-lhe-á cortada a língua que não hesitou em blasfemar contra a fé cristã e contra o nome de Deus..." (Decreto de 1224).

Na luta contra os albigenses e cátaros (sul da França) o Sínodo de Tolosa (1229) estabelece o procedimento a ser seguido. A inquisição torna-se "pontifícia" quando Gregório IX (1231) a regulamenta, confiando seu funcionamento aos Frades Dominicanos. Em 1252 o Papa Inocêncio IV autoriza o uso da tortura. No decorrer dos anos, o conceito "herege" é de tal forma ampliado que grupos inteiros caem sob a suspeita e atuação da Inquisição, tais como sacrílegos, blasfemadores, homossexuais, feiticeiros, alquimistas, bruxas, judeus, etc.

As penas eram variáveis, conforme o gênero de "delito" e iam desde a confiscação de bens, encarceramento, duras penitências com identificação pública (sinais nas roupas), até a morte na fogueira. Esta pena capital era sempre aplicada àqueles que recaíram em heresia (hereges relapsos).

A Inquisição ultrapassou o período medieval e teve sobretudo na Espanha uma longa existência de terror e medo.

A título de exemplo citamos aqui um texto da época em que se relata o auto-de-fé (solene e pública apresentação dos "criminosos", com as respectivas sentenças) de 12 de fevereiro de 1486, realizado em Toledo.

"Todos os que se tinham reconciliado, cerca de 750 pessoas, incluindo homens e mulheres, seguiram em procissão da igreja de São Pedro Mártir na seguinte ordem: os homens formavam um grupo, de cabeça descoberta e descalços. Como estava extremamente frio, disseram-lhes que usassem solas sob os pés que, aliás, estavam nus. Traziam, nas mãos, velas apagadas. As mulheres formavam também um grupo, tinham a cabeça descoberta e o rosto exposto, descalças como os homens e com velas. Entre os homens havia muitas pessoas preeminentes e de alta posição. Com aquele frio cruel, a desonra e o opróbrio, sofriam vendo o grande número de espectadores, pois muita gente viera dos distritos vizinhos para vê-los. Eles seguiam o caminho gritando, chorando e arrancando os cabelos, sem dúvida mais pela desonra que sofriam que por qualquer ofensa cometida contra Deus. Prosseguiam, assim, cheios de aflição, pelas ruas por onde costumava passar a procissão de 'Corpus Christi', até chegarem à catedral. À porta do templo estavam dois capelães, que fizeram o sinal da cruz na testa de cada um, dizendo; 'Recebei o sinal da cruz que negastes e perdestes por terdes sido enganado'. Eles entraram depois no templo até chegarem a uma tribuna erigida junto ao novo portão. Nela se achavam os padres inquisidores. Próximo, havia uma outra tribuna na qual se levantava um altar e foi dita, ali, a missa e feito um sermão. Em seguida, um notário se pôs de pé e começou a chamar cada um pelo nome, dizendo: 'Fulano, está aí?' O penitente erguia a vela e respondia: 'Sim'. Então, em público, liam tudo o que haviam feito como judaizantes (Trata-se, portanto, de pessoas acusadas de serem adeptos ou simpatizantes da religião judaica). A mesma coisa era feita em relação às mulheres. Terminado isso, foi-lhes concedida publicamente a penitência. Ordenaram-lhes que realizassem procissões durante seis sextas-feiras, disciplinando o corpo com açoites de fibras de cânhamo, as costas nuas, os pés descalços e a cabeça descoberta. Tinham que jejuar naquelas sex sextas-feiras. Ordenaram-lhes, igualmente, que em todos os dias da vida, não deviam exercer funções públicas como as de alcaide (governador), aguazil (magistrado), vereador ou jurado, nem ser escrivães públicos ou mensageiros. Aqueles que estivessem exercendo tais funções deviam deixá-las. E não seria permitido transformar-se em emprestadores de dinheiro, lojistas, merceeiros ou ocupar qualquer cargo oficial. E não deviam usar seda ou roupa escarlate ou mesmo de outras cores, nem ouro, prata, pérolas, coral ou qualquer joia. Nem podiam apresentar-se como testemunhas. E foram informados de que, se fossem relapsos, isto é, se caíssem no mesmo erro e recorressem a qualquer das coisas acima mencionadas, seriam condenados à fogueira. Quando terminou tudo isso, às duas horas da tarde, foram todos embora".

Avaliar o fenômeno da Inquisição é uma tarefa arriscada. Nunca se justifica o uso do poder e da violência para eliminar "inimigos" ou simplesmente aqueles que não se enquadram no esquema dominante. O fantasma da inquisição paira sempre sobre uma sociedade que se julga "superior" e "mais perfeita" e ameaça, por dentro, a verdadeira catolicidade do cristianismo.